terça-feira, 12 de julho de 2016

Direito à memória: indígenas na periferia e dificuldades na autodeclaração.


Muitas e muitos de nós da periferia e centros urbanos temos nos deparado com uma realidade de e negação de autodeclaração étnica ainda pouco entendida e tida como importante pelos diversos movimentos sociais e indenitários em que tenho contato. Muitos de nós não-brancos e não afrodescendentes não temos espaço para levantar os aspectos do etnocídio indígena no Estado Brasileiro, no campo, na floresta e na periferia e centros urbano, e ficamos entre apenas duas opções de identidade étnica: branco e afrodescendente. Desde de crianças muitos de nós ouvimos que tivemos nossas ancestrais foram pegas a laço (sequestro seguido de cárcere privado, escravização e estupro) ou que temos índios na família, mas mesmo assim nossa identidade indígena é constantemente negada inclusive pela esquerda por não estarmos vivendo de forma tradicional e dentro de territórios indígena, e que desta forma não sofremos opressão que uma pessoa indígena sofre. Mas é necessário dizer que a opressão da falta de acesso à memória e histórias de nossas etnias é também opressão e está dentro do projeto capitalista, e se muitos de nós não sabemos a nossa etnia isto é prova de que este projeto capitalista de hegemonia cultural tem sido efetivo. Gostaria de levantar algumas barreiras que nós descendentes de indígenas da periferia temos tido para que nem mesmo o nome da nossa etnia indígena chegue ao nosso conhecimento.
Gostaria de começar com um resgate histórico de como o Estado fez um grande esforço para que os povos indígenas não estivessem em seus territórios tradicionais e para que hoje, não estar em terras tradicionais, desse a este mesmo Estado um critério para dizer que os povos são “falsos índios” por não estarem em suas terras tradicionais e sagradas.
Genocídio, miscigenação, etnocídio e escravização dos povos indígenas.
1500-  No documento “ A carta de Pero Vaz de Caminha” em muita passagem este analisa os órgãos genitais de homens e mulheres para ser relatado aos Rei, e descreve que muitos deles estavam com moças e mulheres dos povos originários. Estes relatos merecem ser encarados como estupros e abusos sexuais de crianças, adolescentes e mulheres que marcaram já os primeiros contatos entre invasores e povos originários. Desta forma, fica sendo um problema ter como critério a não miscigenação das etnias para a autodeclaração. Pode-se comparar com culpar a vítima por estupro que esta sofreu. Este foi o início do processo de constituição miscigenada do povo brasileiro.
1562 – Padre José de Anchieta descreve como a troca de objetos infectaram com doenças os povos tradicionais (doenças que ele afirma ser os justos juízos de Deus) e houve 30.000 mortes.
A divisão do território em capitanias hereditárias e início da exploração econômica do território, juntamente com a escravização dos povos originários. Devemos entender que eram neste período aproximadamente mais de mil etnias, a resistência destas etnias à catequização e escravização era diferente de acordo com a cultura. Esta ideia de haver o comportamento do índio brasileiro em geral, é etnocída, é matar a diversidade cultural.
A escravidão em que foram submetidos os povos originários do Brasil (cujo nome originário era Pindorama) e os povos africanos, que era a estrutura econômica do Brasil, os impondo outro modo de vida e outra relação com o trabalho, teve um papel importante no etnocídio destas culturas, porém houve resistência cultural em quilombos por parte de indígenas e africanos como uma alianças entre os povos, resistência esta, também, anticapitalista.
A  “(...) expropriação das terras tradicionais indígenas que veio a se consolidar em meados da década de 1940 com a colonização do oeste do país e veio se consumar com a ditadura civil-militar, que se incumbiu de desenvolver  como política de estado a grilagem de terras, a tortura e o assassinato dos povos indígenas.”  A “Marcha para o Oeste” foi responsável por diversos contatos com populações indígenas e favoreceu a invasão, e titulação de terras griladas , uma política já bastante adotada em governos estaduais. No Mato Grosso do Sul por exemplo, neste período foi feito uma espécie de reforma agrária com as terras de diversas etnias do povo Guarani.
1960 – 1960 – governo do Paraná titula terras indígenas para empresas do oeste. Interesses econômicos pressionavam a o avanço das fronteiras agrícolas sobre terras indígenas.  SPI (Serviço de Proteção ao Índio) legaliza invasões por meio de contratos de arrendamentos .
1963 – Genocídio contra os Cinta Larga, conhecido como Massacre do Paralelo 11.  Desde de 1950 o povo Cinta Larga já tinha sofrido diversos ataques de empresas mineradoras e coloniais da região e seringueiros.  Também há relatos de envenamentos  de alimentos e brinquedos com vírus de gripe, sarampo e varíola, além de assassinatos. Há relatos até hoje destas práticas.


O período da Ditadura Civil-Militar
Sendo o modo de vida dos povos originários um modo de vida que não se integra ao desenvolvimento econômico capitalista e de mercado, fica claro que o mesmo Estado que perseguiu e torturou movimentos anticapitalistas e de direitos humanos por atrapalhar os seus planos de desenvolvimento econômico nacional, iria agir com tamanha crueldade contra povos indígenas que para eles também atrapalhavam os planos desenvolvimento econômico capitalista do seu governo. Desta forma, os crimes da ditadura contra os povos indígenas também eram crimes políticos.  O povo indígena resiste politicamente desde a Revolução dos Tamoios, no séc. XVI.  Segundo o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, em 1968, ano do AI-5, a perseguição a lideranças indígenas foi mais agressiva, e foram criadas cadeias indígena com relatos de trabalho escravo. Terras indígenas eram consideradas regiões com vazio populacional e econômico, ignorando a humanidade dos povos indígenas. A Transamazônica cortava terras de 29 etnias indígenas. A Funai, fez a política de contato para  “atração e remoção de índios de seus territórios em benefícios de estradas e da colonização pretendida.”  Até os dias de hoje há relatos de cadeias irregulares de indígenas.
Não é razoável acreditar que depois de 5016 anos de resistência haja a mesma disposição das etnias indígenas em se autodeclarar destemidamente sua etnia ou viver em território tradicional. Mesmo assim, há povo ques têm feito as retomadas dos territórios e também retomadas culturais como a língua, medicina, arte e tradições em geral. O racismo contra os povos indígenas não tem relação com aparência física, mas sim com cosmovisão de mundo que tudo que nesta sociedade tende a oprimir.
Etnocído em meio urbado
Sabemos que a formação das favelas no Rio e São Paulo, foram impulsionadas em sua segunda onda – 1940 - 1970, pela migração da população que vivia em outras regiões agrícolas do Brasil, e sua maioria trabalhava na roça.  Baseado neste levantamento histórico, relatos e árvores genealógicas de moradores das periferias, podemos provar que o que é chamado de pardo hoje é em grande parte descendente destes povos indígenas que fugiram de toda esta opressão do Estado e tiveram que viver empobrecidos nas periferias das cidades. Se fizermos um resgate nos costumes destas famílias vamos encontrar medicina indígena com ervas, tabaco, samba de coco, curandeiras e curandeiros, parteiras e etc. Traços culturais que em contexto urbano, são tidos como simpatias e feitiçarias abomináveis para Deus segundo os evangélicos (os novos catequizadores), e que infelizmente proíbem em nome de Deus inclusive os chás de ervas. Neste contexto, eu que sou indígena, nascida em uma favela, e o ancestral mais antigo citado pela minha família do lado materno, meu tataravô, vivia na mata em Pernambuco e dançava samba de coco, só tenho acesso a fragmentos desta cultura indígena que foi demonizada. Minha bisavó, que poderia me contar mais da minha ancestralidade indígena é evangélica desde os 14 anos. Mesmo assim, identifico traços da cultura indígena em minha família, e gostaria de me autodeclarar indígena, também pela história de resistência que foi negada a mim, mas não será para os meus filhos. Saber o nome da etnia é um desafio que com pesquisa e disposição é possível ainda. 
 Afinal, para quê a identidade indígena nos centros urbanos?
Porque quero ter acesso à ciência, conhecimento, e modo de vida da minha etnia. Se eu como descendente quero me autodeclarar, existem diversos motivo: o acesso a políticas pública de educação tando para ter acesso à língua, e conhecimento tradicional, ou porque o sujeito foi empobrecido pela expulsão , estigmatização e escravidão dos ancestrais e quer ter acesso a cotas, quanto porque quero e desejo me aproximar da cultura porque me identifico e quero escolher este modo de vida porque julgo melhor em comparação ao modelo eurocêntrico e capitalista.
Porque sem a autodeclaração não terei acesso à aplicação da lei 11.645. A diretoria de ensino, só dá formação para professores da rede estadual de ensino caso haja indígenas ou quilombolas autodeclarados naquela unidade escolar, e mesmo assim a autodeclaração pode ser questionada caso o território em que a unidade escolar esteja não for próxima ou dentro de terra indígena demarcada, o que não é algo fácil de se concretizar nem onde vivem povos de forma tradicional, quanto menos em contexto urbano. Isto causa agravamento dos preconceitos que a escola ainda perpetua sobre os indígenas. As culturas dos povos indígenas são centenas e como ciências tão importantes quanto a europeia para a humanidade, quanto mais para os seus descendentes, o que poderia gerar uma retomada cultural importante para uma parcela da população que vive a margem da sociedade nas periferias e não tem acesso ao conhecimento sobre sua ancestralidade. Acreditamos que estes conhecimentos poderiam trazer novas perspectivas de resistência cultural e política em relação a dominação ideológica capitalista.
As ciências indígenas têm sido estudadas pela Nasa e indústria farmacêutica e não pelos descendentes dos povos. Ao invés disso, o que nós descendente de indígenas não declarados temos acesso apenas ao etnocídio que o avanço de igrejas pentecostais causam, chamando toda a medicina dos povos indígenas de simpatias, que são pecado e portanto proibidas. Estas igrejas estão em cada esquina das periferias, doutrinando a população a deixar estes costumes para trás e evangelizar as benzedeiras e benzedeiros, proibindo seus fiéis inclusive de tomar chás. Tudo isso é incluído na categoria “macumba” que é demonizado, promovendo o etnocídio. Penso que pode ser provavelmente uma das causas de, no caso da minha família, até minha bisavó ninguém se declarava indígena, pois ela era evangélica desde os 14 anos. Porém sei que sou descendente de indígena porque meu tataravô era o outro, o que era o indígena, e é com essa memória que vou ir atrás da minha ancestralidade, porque me identifico mais com este outro, do que com os que foram copitados pela cultura eurocêntrica.
Quando o Estado quer determinar os povos indígenas como apenas aqueles que vivem em território demarcado, todo o processo de expulsão dos povos, etnocídio, escravização e genocídio num processo de mais de 500 anos - e sem pausa - é ignorado.  Precisamos levar em consideração a migração de povos de todo o Brasil para as periferias dos centros urbanos, principalmente Rio e São Paulo, por conta de, entre outros fatores, a exploração que sofreram em suas regiões, causadas por históricas expansões das fronteiras agrícolas e grilagem de terras indígenas e quilombolas.

Referências:
http://justificando.com/2016/05/12/a-denuncia-de-um-advogado-sobre-a-situacao-dramatica-dos-indigenas-frente-a-repressao-de-fazendeiros/